Como começou a luta pela Justiça Ambiental?

O movimento por justiça ambiental é fruto de uma bem-sucedida tentativa de juntar os movimentos ambientalistas e os movimentos por direitos civis nos Estados Unidos1. Ele surgiu objetivando discutir o fenômeno de imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações mais vulneráveis e com menor influência política, social e financeira para reivindicar seus direitos.

Onde e como tudo começou? Inicialmente, vale citar um momento marcante da história da justiça ambiental: a ação coletiva (class action) movida por Margareth Bean e outros moradores de Houston (Texas), em face de uma empresa de gestão de resíduos que conseguiu autorização para abrir um aterro sanitário em um bairro de classe média, onde havia uma população majoritariamente negra. De acordo com o sociólogo Robert Bullard2, “moradores formaram o Grupo de Ação Comunitária do Nordeste ou NECAG. NECAG e sua advogada, Linda Bullard McKeever, entraram com uma ação coletiva para bloquear a construção do aterro. A ação de 1979, Bean versus Southwestern Waste Management, Inc., foi a primeira de seu tipo a desafiar a implantação de um aterro sanitário invocando a lei dos direitos civis. O caso emblemático de Houston ocorreu três anos antes do movimento por justiça ambiental receber atenção nacional em virtude de uma ocorrência no condado americano de Warren, na Carolina do Norte, onde a maioria dos habitantes era negra”.

Apesar de terem perdido a ação, a luta pela justiça ambiental permaneceu. O sociólogo Robert Bullard, marido da advogada que ajuizou esta ação, se debruçou em estudos que analisavam o impacto de problemas ambientais nas comunidades mais vulneráveis. Participou de manifestações populares contra a instalação de aterros de lixo e material tóxico próximo a bairros pobres, o que lhe rendeu o apelido de: "PAI DA JUSTIÇA AMBIENTAL".

PROTESTOS DE GRUPOS DE MORADORES E ATIVISTAS NO CONDADO DE WARREN, NA CAROLINA DO NORTE (EUA) - 1982

Muitos autores consideram como episódio inicial do movimento da Justiça Ambiental, os protestos de grupos de moradores e ativistas em Afton, no Condado de Warren, na Carolina do Norte (EUA) que ocorreram em 1982. Os habitantes do condado se organizaram para protestar contra a instalação de descarte de resíduos de policlorobifenilo (PCB).

Os PCBs eram amplamente usados em tintas, plásticos, adesivos, entre outros. Entretanto, os cientistas descobriram que, se fossem inalados ou absorvidos pela pele, os produtos químicos poderiam causar defeitos de nascença, câncer e outras doenças em vários órgãos do corpo humano.

A cidade de Afton tinha uma população de aproximadamente 16.000 habitantes e 60% era composta por afro-americanos, sendo que a maioria vivia abaixo da linha de pobreza3. A fim de evitar o despejo do material tóxico próximo a área onde residiam, os manifestantes, em protesto não violento, se deitaram na estrada diante dos caminhões que levavam a perigosa carga, impedindo que os veículos pudessem passar, conforme mostra a imagem a seguir.

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Foto retirada do site: climateandjustice.com

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Foto de Ricky Stilley. O Reverendo Benjamin Chavis em 1983 durante os protestos contra o despejo de lixo tóxico.

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Foto de Ricky Stilley. Retirada do site: www.uol.com.br/ecoa

Infelizmente esta manifestação não conseguiu evitar o aterro de lixo e em 15 de setembro de 1982, o Estado começou a empilhar terra contaminada em um lixão de 22 acres escavado em terras agrícolas.

Vale ressaltar que, um total de 500 pessoas foram presas em decorrência dos protestos. A partir deste momento, a luta pela Justiça Ambiental ficou conhecida em todo território americano e, se tornou mais evidente, que o critério racial pesava de forma significativa na escolha do local para depósito da carga tóxica.

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Foto de Ricky Stilley. Retirada do site: www.washingtonpost.com

Na reportagem publicada em 06 de abril de 2021 no Washington Post sobre o Racismo Ambiental, uma das manifestantes, uma jovem negra, mãe de dois filhos chamada Dollie Burwell, com menos de 30 anos, relatou como foi participar das manifestações.

Segundo Burwell, foi reunido um pequeno grupo de mulheres negras para lutar contra o lixão. Todos temiam que o despejo contaminasse as águas subterrâneas e tornasse a comunidade um verdadeiro ímã para o futuro descarte de lixo tóxico.

Durante a entrevista Burwell chegou a afirmar que sua comunidade era um alvo fácil: “Éramos pobres, éramos negros e éramos politicamente impotentes”.

As mulheres se organizaram em reuniões na Igreja Batista de Coley Springs, em um grande prédio perto do município de Afton. Elas “cozinhavam e alimentavam os manifestantes, faziam e distribuíam os panfletos, e ligavam para as pessoas para garantir que teríamos gente para participar”.

Como membro da Conferência de Liderança Cristã do Sul, fundada pelo Rev. Martin Luther King Jr., Burwell comentou que “tinha a capacidade de convocar as pessoas para que viessem, marchassem e fossem para a prisão conosco”. Assim, grandes nomes da luta pelos direitos civis compareceram à manifestação dentre eles o Reverendo Benjamin F. Chavis.

Benjamin Franklin Chavis Jr., um reverendo ativista dos direitos civis, ao participar do episódio no Condado de Warren, acabou por se tornar o grande líder do movimento sendo o criador da expressão racismo ambiental. Em entrevista concedida ao The New York Times4 em 1993 ele comentou como as manifestações surtiram efeito positivo para a causa:

"Comecei a receber ligações de todo o país depois disso, de pessoas me dizendo que a situação no Condado de Warren não era incomum”.

Com isso, verificou-se que em muitas localidades dos EUA este problema se repetia. Os protestos de Warren popularizaram também a expressão NIMBY, acrônimo de Not In My BackYard: literalmente “Não no Meu Quintal” que trazia a ideia de que no quintal dos outros podia jogar lixo tóxico. Conforme disposto por Henri Acselrad5, o movimento da Justiça Ambiental trouxe para o debate a questão de que o critério que prevalecia era “sempre no quintal dos pobres e negros”. Esta realidade precisava ser modificada para que ninguém sofresse os efeitos da poluição tóxica.

A partir de daí, difundiu-se nos EUA a conscientização de que as situações de risco ambiental estavam relacionadas com disparidades étnicas e sociais. As áreas mais afetadas por degradação ambiental de todos os tipos, atingiam principalmente grupos mais vulneráveis.

ESTUDO DO GENERAL ACCOUNTING OFFICE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Robert Bullard em seu artigo “Vivendo na linha de frente da luta ambiental: lições das comunidades mais vulneráveis dos Estados Unidos”2 esclarece que em 1983, por influência dos protestos no Condado de Warren, foi elaborado um Relatório Federal contendo um estudo do General Accounting Office dos Estados Unidos da América intitulado “Implantação de Aterros de Resíduos Perigosos e sua Correlação com o Status Racial e Econômico das Comunidades Vizinhas”. Este documento acabou confirmando o que Bullard havia constatado em suas pesquisas anteriores em Houston: as comunidades negras viviam em áreas onde havia um percentual alto de aterros sanitários.

Esse estudo, conforme relatado pelo autor, “revelou que três, em cada quatro aterros comerciais com resíduos perigosos na chamada região 4 (que inclui Alabama, Flórida, Geórgia, Kentucky, Mississippi, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Tennessee), estavam localizados em comunidades predominantemente negras, embora estas comunidades representassem apenas 20% da população da região. Assim, a conquista mais importante dos manifestantes foi colocar o racismo ambiental no mapa”.

Outra pesquisa, feita em 1987, a pedido da Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ (UCC), demonstrou que a raça de uma comunidade era o que mais explicava a existência ou não de depósitos de rejeitos perigosos de origem comercial numa determinada localidade. Benjamin Chavis, o reverendo que participou dos protestos do condado de Warren, realizou um estudo em o todo o país e concluiu que o indicador mais preciso para saber se alguém moraria perto de um depósito de resíduos tóxicos era a cor de sua pele.

PUBLICAÇÃO DO LIVRO “DUMPING IN DIXIE”

Em 1990 foi publicado o Livro: “Despejando em Dixie” de Robert D. Bullard. Este livro destacou o ativismo ambiental dos negros no Sul dos EUA ao mesmo tempo em que esta população se empenhava na luta por seus direitos civis. A obra relata tudo sobre o movimento desde as lutas comunitárias contra instalações para resíduos tóxicos, até o movimento pela justiça ambiental crescer e passar a abordar múltiplas questões, sendo multiétnico e multirregional.

Cumpre esclarecer que, o termo Dixie, que aparece no título do livro, é um “apelido” atribuído a Região Sul dos Estados Unidos, compreendendo os estados do Texas, Arkansas, Louisiana, Mississippi, Tennessee, Alabama, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Geórgia e Flórida.

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Foto: Robert D. Bullard

CONFERÊNCIA NACIONAL DAS LIDERANÇAS AMBIENTAIS DAS PESSOAS DE COR WASHINGTON, DC (EUA) - 1991

Em 1991 ocorre a Conferência Nacional de Lideranças Ambientais das Pessoas de Cor que contou com a participação de mais de 1000 pessoas e foi realizada em Washington DC (EUA). As pessoas que participaram da Cúpula partilharam suas estratégias de ação, redefinindo o movimento ambiental e desenvolvendo planos comuns para resolver os problemas ambientais que afetavam a comunidade negra nos Estados Unidos e ao redor do mundo. Em 27 de setembro de 1991, os delegados da Cúpula definiram dezessete “Princípios da Justiça Ambiental”.

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Foto retirada do site: https://www.reimaginerpe.org/20years/alston

Estes princípios foram desenvolvidos visando organizar, estabelecer redes e relações entre as organizações não-governamentais (ONGs). Em junho de 1992, já haviam traduções em espanhol e português dos Princípios que estavam sendo distribuídas e usadas por ONGs e grupos de justiça ambiental.

De acordo com Joan Alier Martinez3, o movimento pela Justiça Ambiental passa então a ser reconhecido. A partir daí, segundo ao autor “os ativistas da justiça ambiental desenvolveram investigações estatísticas para provar que a raça é um indicador geográfico de carga ambiental”.

MEMORANDO SUMMERS

Henri Acselrad, em sua obra “O que é Justiça Ambiental”5, narra o episódio ocorrido em 1991, que teve grande repercussão junto ao movimento ambientalista. Na ocasião, um executivo do Banco Mundial chamado Lawrence Summers, escreveu um memorando de circulação restrita. Entretanto, o rotineiro documento acabou circulando fora do Banco Mundial e chegou na redação do jornal The Economist e se tornou o famoso Memorando Summers.

O texto do documento dispunha o seguinte:

“Cá entre nós, o Banco Mundial não deveria incentivar mais a migração de indústrias poluentes para os países menos desenvolvidos?”

Três razões foram apontadas como justificativas para tal sugestão pelo próprio Summers:

  1. O meio ambiente seria uma preocupação “estética” típica apenas dos bem de vida;
  2. Os mais pobres, em sua maioria, não vivem mesmo o tempo necessário para sofrer os efeitos da poluição ambiental. Alguns países da África ainda estariam subpoluídos.
  3. Pela “lógica” econômica, pode-se considerar que as mortes em países pobres têm um custo mais baixo do que nos países ricos, pois seus moradores recebem salários mais baixos.

Todas estas declarações revelaram as intenções perversas de se realizar a distribuição dos riscos ambientais de maneira não democrática, sendo que as populações mais vulneráveis arcam com os ônus da degradação da natureza.

ECO-92

A Conferência Eco-92 ou Rio-92 foi a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tendo sido realizada no Rio de Janeiro no ano de 1992. Esta Conferência teve desdobramentos importantes nos campos científico, diplomático, político e na área ambiental, além de ceder espaço a debates e contribuições para o modelo de desenvolvimento sustentável.

A Agenda 21 Global - o principal registro da Rio-92 apresenta-se em 40 capítulos. Ela se apresenta como um plano ou planejamento proposto para auxiliar na construção de sociedades sustentáveis, considerando métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica, a fim de contribuir para o gerenciamento global necessário.

É possível acessar a Agenda 21 Global por meio do link http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Table/Agenda-21-ECO-92-ou-RIO-92/.

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Joan Martinez cita ainda que em 1994 foi emitida a Ordem Executiva nº 12.898 sobre Justiça Ambiental pelo presidente Bill Clinton. Esta ordem determinou que todas as agências federais – ainda que não as empresas privadas e os cidadãos especificamente – atuassem de maneira tal que não recaíssem cargas desproporcionais de contaminação sobre populações minoritárias e de baixa renda em todos os territórios e possessões dos EUA. Desse modo, tanto a pobreza como a raça são neste momento assumidos enquanto referência.

PROMESSAS APRESENTADAS PELO GOVERNO DOS EUA EM 2021 DIVULGADAS NA IMPRENSA:

“Em seus primeiros dias como presidente, Joe Biden começa a promover mudanças no país. Ele tomou uma série de medidas em relação a política ambiental. As principais são que o governo federal não vai autorizar novas perfurações de petróleo e gás em suas terras, cortou subsídios de combustíveis fósseis e determinou a transformação da frota de carros do governo em veículos elétricos.

Além dessas mudanças pontuais, Biden também determinou a criação de um conselho de justiça ambiental. Ele tem como objetivo lidar com desigualdades raciais e econômicas causadas por mudanças climáticas e poluição.”(https://cultura.uol.com.br/noticias/16029_joe-biden-anuncia-pacote-ambiental-que-promove-mudancas-na-politica-ambiental-norte-americana.html)

O governo de Joe Biden incorporou a justiça ambiental , pelo menos em teoria, prometendo considerá-la em todas as tomadas de decisão e direcionando 40% dos investimentos federais relacionados ao meio ambiente e ao clima para comunidades que suportaram o peso de danos ambientais anteriores. (https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2021/03/as-origens-da-justica-ambiental-por-que-so-agora-recebendo-atencao)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  1. HERCULANO, S. Justiça Ambiental: de Love Canal à cidade dos meninos, em uma perspectiva comparada. In: MELLO, M. P. (Ed.). Justiça e Sociedade: temas e perspectivas. [s.l.] LTr, 2001. p. 215–238.
  2. BULLARD, R. D. et al. Vivendo na linha de frente da luta ambiental: lições das comunidades mais vulneráveis dos Estados Unidos. p. 32, 2013.
  3. (MARTÍNEZ ALIER, J. O Ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 2a Edição, Editora Contexto, 2018)
  4. https://www.nytimes.com/1993/04/11/us/man-in-the-news-benjamin-franklin-chavis-jr-seasoned-by-civil-rights-struggle.html
  5. ACSELRAD, H.; BEZERRA, G. DAS N.; MELLO, C. C. DO A. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2009.
  6. ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados, v. 24, n. 68, p. 103–119, 2010.